Encontras-me em ti

 

Todos os escritos são da autoria de Fernanda Cruz

Estou a tecer-te um par de asas

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“Há frases ou pequenos textos que me tocam diretamente na consciência. Parece que ao ter conhecimento deles, seja por ler seja por ouvir, fico consciente e desperto para algo que até aí não estava presente, e para além de me porem a pensar, fazem-me sentir.

Eu tenho de sentir um efeito no que me é transmitido, para que isso aconteça. Há algo que fica a vibrar, que faz movimentar o pensamento, que redefine os conceitos e que me faz perceber o que até ali não era capaz de entender assim, ou se calhar até entendia, mas não tinha consciência disso, não tinha definido assim.

Esta frase estancou uma das minhas leituras corridas. Estava em castelhano e embora não dissesse quem era o autor, eu fui atras da sua origem para referir os respetivos créditos. A versão original é: “Te estoy tejiendo un par de alas, se que te irás cuando termine… pero no soporto verte sin volar.”, o que traduzido dá “estou a tecer-te um par de asas, sei que te irás quando terminar… mas não suporto ver-te sem voar” e seu autor é Andrés Castuera-Micher.

Mais do que tentar entrar na mente do autor e adivinhar o que queria expressar, é importante sabermos o que nos faz sentir. Eu pelo menos assim penso e assim gosto que façam com o que escrevo. Nesta frase nem tento saber o que a motivou, mas antes o que me transmite, e o impacto foi grande.

Eu já só conseguia conceber o amor assim, em liberdade, sem apego, sem cordas nem amarras, sem chantagens, sejam elas grandes, pequenas, emocionais ou materiais. Já encarava o amor acima de teias e tramas, acima do ter, da posse, mas esta frase leva tudo isto a um extremo. Quem ama é capaz disto, de fazer um par de asas e oferece-las, correndo o risco de ver o ser amado voar para longe? Ui, isto faz mesmo pensar e sentir. Podemos dizer "sim, claro", ou que sabemos que a pessoa não as usaria, mas perante esta ideia, não é da boca para fora que conhecemos a nossa verdade, é do coração para dentro.

Aqui surgem as questões e as primeiras são logo: será que eu saberia como fazer esse par de asas? E se soubesse, faria? E se fizesse, seria capaz de as entregar? Depois vem as outras: será que sou amada(o) ao ponto de nem sequer se pôr a questão do voo para longe? Será que o amor que tenho pelo outro o aprisiona?

Eu quando quero ter a certeza em relação a alguma coisa, penso sempre na situação extrema e aí surgem as respostas e se não conseguir agir por discernimento, faço-o por exclusão de partes. E não é preciso viver essa situação extrema para saber, basta fazer a leitura do que sentimos ao pensar nela.

Esta frase toca o amor incondicional, que é aquele que não exige nada. A verdade é que ainda não estamos preparados para ele, mas a noção do que é já a vamos tendo, ao sermos confrontados com ideias como esta.

Temos de levar o amor a este ponto? Se soubermos para isso, a resposta é sim, mas se ainda não sabemos, o que temos é de amar o melhor que soubermos, sabendo que somos o reflexo do que fazemos com o outro. Temos de ter consciência que a liberdade que não queremos dar hoje, podemos precisar amanhã, e quem prende também está preso.

Estou sinceramente convencida que muitos não voarão para longe e que a sensação de ter oferecido e recebido esse par de asas vai fortalecer a união e amadurecer a consciência para o verdadeiro sentido do que é realmente o amor. Só aqui encontro a fidelidade.

Ao contrário do que possa parecer, isto não serve só para o amor de casal, serve para todo o tipo de ligações como pais e filhos ou amigos. Aliás, esta ideia subentende muito mais a liberdade e o respeito, do que o amor propriamente dito. Serve também, por exemplo, para aquele patrão que ensina tudo ao empregado, sabendo que ele pode optar por tomar outro rumo, mas mesmo neste caso, ainda que fique a perda da pessoa, fica de forma muito mais ostensiva gravada a consciência tranquila e a gratidão por ela.

Acredito que a perda é ilusória. Não podemos perder algo que não é nosso, que provavelmente nunca foi. Ficamos por vezes tristes porque criamos uma ilusão e sentimento de posse perante algo ou alguém, mas todos sabemos que ninguém é de ninguém e que estamos numa fase de consciência de desmaterializar tudo e a vida convida-nos a isso a toda a hora.

Quando existe por exemplo uma catástrofe natural, e oiço os testemunhos de quem viveu na primeira pessoa dizendo “perdi tudo”, de imediato me vem à ideia que a única coisa que não perdemos é o que somos, pois tudo aquilo que temos podemos deixar de ter de um momento para o outro.

Voltando à frase, e como há sempre o outro lado de tudo, vamos ver a questão por outro ângulo. Será que nós próprios somos prisioneiros? Será que saberíamos voar se nos oferecessem as asas? Será que faríamos uso delas, ou ainda que as tivéssemos optaríamos por, em consciência e por convicção, ficar nesse mesmo lugar?

Ainda que cheguemos à conclusão de que não somos livres e não damos liberdade, a consequência é apenas o facto de nos conhecermos um pouco melhor. Não temos de mudar a vida toda por causa disto, mas podemos, aos poucos, tomar pequenas ações, afinar os instrumentos que somos, de forma a que as vibrações por nos sentidas e emitidas formem notas cada vez mais puras e nos deixem em maior serenidade.

Tomar consciência já é muito importante, mas o maior passo é sempre tornar a realidade coerente com essa consciência, e aí está sempre o verdadeiro desafio.”

 

Fernanda Cruz

 

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