Encontras-me em ti

 

Todos os escritos são da autoria de Fernanda Cruz

Reflexo

Estrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativa
 

 

“E no momento em que achei que estava a ser realmente o que numa primeira fase queria atingir, como alma, como espírito, aparece alguém que me agarra e me arrasta até à frente de um espelho, me despe de corpo e me faz encará-lo. Afinal não estou assim tão limpa, tão clara, tão serena como pensava estar. É tão duro ver todos os buracos que não estão preenchidos e onde não há luz. É devastador tocar todas as feridas da doença chamada ego, e da qual pensei já estar curada, e que nem sequer estavam cicatrizadas, sangrando e manchando todo o espírito.

Não posso acreditar nesta dura realidade, não posso acreditar que seja este o meu estado. Tirem este espelho da minha frente, este não pode ser o meu reflexo!

E tudo o que estudei, tudo o que aprendi? Como posso viver com esta imagem de mim que desconhecia?

Pois é, ninguém disse que seria fácil, ninguém disse que tinha de ser como imaginei que seria. O caminho é longo e sem fim à vista, tortuoso, sombrio por vezes, com subidas íngremes em que me sinto sem forças para continuar. Tropeços e quedas que me fazem pensar em deixar-me ficar, sentar-me confortavelmente ali onde caí, não caminhar mais, ficar apenas a receber o que o momento tem para dar, sem agir. Ver os outros a passar por mim, sem sequer esticar a mão para pedir ajuda.

Doem-me os pés, não serei capaz de me levantar, muito menos de voltar ao ritmo que levava. Mas alguém me toca no ombro, e ao virar-me para ver quem é, vejo todo o meu passado. É o caminho já percorrido, cheio de montes de esperança e vales de medo, pedras ensanguentadas pelas quedas e flores alimentadas de lágrimas derramadas. Poças que ficaram das tempestades por que passei mas que tornaram o caminho mais verde, momentos em que desejei tanto o sol que ele apareceu e queimou e tirou a cor do meu caminho. Este caminho não tem só marcas de pés, tem marcas das mãos e do corpo onde, por estar impedida de caminhar, rastejei! Alturas em que fui descalça e outros em que mal toquei o chão. Recusei tantas vezes companhia que facilitasse o percurso, arrastei tantas vezes quem estava sentado na beira do caminho. Não usei os patins que me ofereceram e ainda emprestei muitas vezes os meus sapatos, mas os meus sapatos não serviram a todos. Corri à frente para pelo menos eliminar as pedras de quem não quis que eu carregasse ao colo. Cheia de boas intenções, fiz projetos de vida sobre esta ideia e errei pois impedi que ganhassem a sua própria massa muscular e resistência que lhes permitissem chutar as pedras. Sem querer fiz com que tivessem danos ao mais pequeno tropeço. Andei muitas vezes acompanhada sem dar conta, sem desfrutar da companhia. Sorri e acenei a quem nem me via e não fui capaz de olhar para o lado e sentir a presença.

Tantos cenários diferentes, tantas marcas no chão mas uma coisa se manteve sempre. As pegadas e as marcas indicavam sempre o mesmo sentido, sem voltas atrás. Foi sempre para a frente independentemente de serem passadas grandes ou de ter ido pé ante pé.

Então viro-me para a frente para agradecer a quem me proporcionou esta visão e me deu um novo alento, mas não vejo ninguém, apenas uma luz que ilumina o caminho do futuro. Esta luz não se vê, sinto-a como sinto o conforto de mãos estendidas prontas a agarrarem-me assim que estendo a minha. Não as vejo. São como os olhares que me abraçam.

Estou pronta, novamente. Quero-me levantar, sacudir a poeira e entrelaçar os dedos nos dessas mãos, com a certeza que não me deixarão ficar no chão e que se tornam mais fortes pelo esforço que exigi delas.

Não preciso ver nem tocar, apenas senti-las. Confiar que, nas minhas dúvidas, quando estou de olhos fechados, me guiarão pelo melhor caminho, não o mais fácil, o melhor.

Tenho de enfrentar novamente aquele espelho. É realmente o meu reflexo ou este foi agravado por quem me julga? Mas afinal porque me despiram assim, se sou apenas humana, se ainda preciso de um corpo para ser. Não vou ser só porque acham que sou. Depois de limpar as lágrimas é mais nítido o meu reflexo e o sangue das feridas não era meu, mas de quem me arrastou. É verdade que ainda tenho muitos medos, muitos buracos na alma mas que só se conseguem notar porque há luz no meu interior que não se vai apagar. Serviu tomar consciência de todas as cicatrizes. Perdoo-me mais uma vez hoje e sempre. A caminhada é longa mas tenho a eternidade para a fazer.”

Fernanda Cruz

 

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